Setembro 26, 2010

Carlinhos


Carlinhos adorava brincar no parquinho que ficava em frente à sua casa. Sua mãe o levava ali à tarde, depois da pré-escola. Ela se sentava no banco e deixava o tempo passar; às vezes bordando, às vezes lendo o Readers Digest, apelidado por aqui de “Seleções”. Enquanto isso ele passava uma ou duas horas enchendo seu caminhãozinho de areia para transportá-la até meio metro dali, onde o tratorzinho aguardava para construir o castelo do rei.

Às vezes haviam outras crianças lá, cada uma com seus brinquedos. Carlinhos gostava de brincar com elas, fazia amizade. Naquela tarde só havia uma criança lá; uma menina mais nova. Os cachos cor de abóbora presos com elásticos coloridos dos dois lados da cabeça. Sardas nas bochechas gordinhas. Era da família nova, só de mulheres, que se mudara na semana anterior. Carlinhos ainda não a conhecia.

Estava brincando com a areia quando ela veio até o menino. “Posso brincar com você”? Carlinhos assentiu com a cabeça. Ela começou a pegar mais areia para pôr no caminhão de brinquedo. Ele segurou sua mãozinha de leite, contrastando com sua pele escura. “Já tá cheio”, protestou. A menina discordou. “Não. Cabe mais”. E fez um montinho sobre a carroceria de madeira. Ele riu. “Meu nome é Carlinhos”. “Eu sou Celebrine”.




Setembro 26, 2010

Celebrine


Quando Celebrine tinha onze anos sua tia disse: “Segura essa tua filha, Tânia. Ela gosta de uma bagunça”. De fato Celebrine fazia muita bagunça na escola. Ficava conversando durante as aulas, fazia caricaturas dos professores, às vezes até jogava bolinha de papel molhado na professora de espanhol.

Mas não era a esse tipo de bagunça à que tia Rosângela se referia. Tia Rô se referia aos meninos. Claro que sua sobrinha conversava com outras garotas de sua idade. Isso não incomodava tia Rosângela. O que a incomodava era que ela tinha muitos amigos homens e na época, seu amigo mais próximo era o Carlinhos, filho da Dona Margarida que morava do outro lado da praça. Os dois passavam tardes inteiras juntos, hora na casa de um, hora na do outro.

Numa tarde os dois estavam na casa de Carlinhos quando, depois de terem ouvido um pouco de música no rádio, decidiram assistir à televisão. Estava passando A Lagoa Azul na seção da tarde. Nos primeiros minutos Carlinhos já não simpatizou com o filme. “Isso tá chato. Vamos mudar de canal”. Celebrine lançou-lhe um olhar de decepção. “Eu estou gostando. É um filme romântico”.

“Por isso mesmo. Filme de romance não acontece nada.”

“Larga de ser bobo. Eu quero ver”.

Acabaram assistindo.

Lá pelo meio do filme a menina ruiva se virou para o amigo. “Você já beijou uma garota?” Carlos foi pego de surpresa pela pergunta. Era um ano mais velho mas nunca havia beijado uma menina, o que o deixava um pouco envergonhado. Mas ao mesmo tempo não queria que a amiga desconfiasse do que ele costumava fazer no banheiro com as revistas que seu irmão comprava; nem que era nela que ele pensava fervorosamente naqueles momentos.

“Não, nunca beijei”. Acabou confessando.

Diziam que tia Rosângela era uma velha chata e retrógrada que se achava melhor que os outros aos olhos de deus porque ia à igreja se confessar todos os domingos. Não perdia um. Nem mesmo em feriado prolongado. Comentava-se até que um dia o padre, exasperado, lhe disse. “Minha irmã, você não precisa se confessar todos os domingos. Só quando tiver cometido um pecado que precise de perdão do Senhor. Faz mais de mês que a senhora não fere nenhum mandamento. Aliás, há anos que a senhora não peca. Deve ser a pessoa mais temente a Deus na minha paróquia. Não carece de vir todo santo domingo”!

Padre Beto sabia bem do que estava falando quando dizia que tia Rô era a pessoa mais respeitadora dos ditames da Igreja por aquelas bandas. Ele mesmo é que não era. Todo domingo, depois da missa, continuava bebendo o vinho de sacramento. Mais à tarde organizava um carteado na sacristia com dois amigos da juventude e um dos coroinhas; Tonico. Isso sem falar em uma ou outra obscenidade que cometera ao longo dos anos e que até hoje o atormentavam. Consolava a consciência dizendo-se: “Quem sou eu para querer ser tão santo quanto o filho de deus? Sou um reles mortal que se esforça para transmitir a Palavra. Mas a carne é fraca”. E lá se ia colocar as moças para rezar na zona.

Mesmo assim, Dona Rosângela continuou a se confessar todos os domingos. Passou a ir numa igreja do bairro vizinho e criou uma rixa com o padre Beto. Era dessas. Mas uma coisa tinha-se que admitir; conhecia o temperamento da sobrinha.

“Quer experimentar?” Celebrine perguntou ao amigo com um risinho. O rosto se afogueando.






Novembro 25, 2009

Cupim

Deixa eu contar uma coisa sobre o Cupim. Ele é surfista. Começou surfando trem em Caxias na década de 1980, quando tinha doze anos. Só aos quinze ele conseguiu comprar uma prancha e passou a freqüentar a zona sul, mas só à noite ou em dia de chuva porque ele era péssimo nas ondas e os garotos de Ipanema ficavam sacaneando ele.

Então ele foi aprendendo a surfar sozinho, até finalmente poder ir à praia nos dias de sol. Ele ainda prefere surfar à noite, debaixo de chuva, na Macumba; mas vai ao Arpoador aos sábados e domingos só para esculachar os surfistas da zona sul. O Cupim é melhor que todos eles.

Eventualmente ele fez faculdade de farmácia bioquímica ou bio-qualquer-coisa. Eu sei lá. Casou com uma namorada argentina que conheceu em uma viagem ao nordeste. Teve um filho, fez PhD em Berkeley, Califórnia, mas diz que foi só desculpa para surfar por lá.

Voltou ao Brasil e teve mais dois filhos. Acabou arranjando um emprego como professor em uma universidade federal, mas não é isso que ele é. Ele não é professor universitário. Ele é surfista.




Novembro 25, 2009

Caxias

Eu nunca tinha ido à Caxias antes mas a descrição do Cupim acabou atiçando minha curiosidade. "Brother, a parada é muito boa. Tu vai prá outra dimensão. Pode crer no que eu tô te falando. Tu só vai acreditar depois que experimentar".

Cupim é professor universitário. PhD em biologia molecular. Ele mora em Caxias desde pequeno, conhece o lugar todo. Durante a adolescência ele ia de lá até a zona sul todos os dias, surfar. Ainda hoje ele faz isso de vez em quando. A irmã dele tinha virado delegada há pouco tempo. Ela também morava em Caxias.

"Beleza. Você me leva até lá então?"

Tá, mas você dirige. Eu me estresso com o trânsito nesse horário."

Tinha um engarrafamento enorme dali até Caxias. Demoramos quase duas horas para chegar. No caminho passamos por uma blazer com luzes vermelhas em cima. Chegamos à uma praça com um parquinho. Embora já fosse noite, ainda haviam algumas crianças brincando. Provavelmente moram em algum dos prédios que circundam a praça. "Pára aqui ó." Sigo a indicação do Cupim e estaciono junto à praça. "Pode deixar aqui? Não vão roubar?" "Relaxa, brother. Aqui não tem assalto não".

Vamos andando até uma pequena ladeira mais adiante. Algumas pessoas estão na rua, sentadas no meio fio. A maioria é negra, bermuda surrada e chinelos de dedo; algumas camisas. Eu de calça comprida e camisa social destôo da paisagem. Olho pro Cupim ao meu lado. Ele usa bermuda e camiseta, calça tênis. A roupa é mais nova que a minha, mas chama menos atenção.

Uma senhora curvada se aproxima de mim. "Uma esmola por favor". Leva um chute nas costelas. "Aqui num podi pedí ismola porra! Já falei!" É um garoto, quinze, dezesseis anos. Outro moleque chega e pergunta o que a gente vai levar. Parece que o Cupim já conhece o protocolo. Deixo ele responder. "Cinqüenta de prensado pra mim. E você, Sérgio?" Peço 250 pra mim. Prensado também. "Por aqui".

Seguimos o garoto ladeira acima, viramos em outra rua. Algumas curvas a mais e entramos numa casa com paredes de tijolos. Nenhuma tinta por fora, nenhum móvel dentro. Ele pede para aguardarmos ali e vai embora com nosso dinheiro. Dali à pouco entra mais um cliente. Uns quarenta anos, magro, olheira funda, paletó e gravata. Tem gente que consegue ser menos discreta que eu.

Nosso vendedor chega. Não é o mesmo garoto. Esse é mais velho, tênis de marca. "Pra quem é a brizola?" Paletó e gravata se adianta para pegar um pacote branco. Se esse cara for cheirar isso tudo sozinho a esposa dele vai acordar viúva amanhã.

Cupim e eu pegamos a nossa parte. O vendedor nos oferece dois pacotinhos de pó. Eu recuso, o Cupim pega o dele. "Num quer mesmo? É de grátis." Bom, se é assim; por que não? Somos avisados de que temos que esperar enquanto verificam a saída. Dois minutos depois uma menina aparece e nos guia pela descida. Saímos do outro lado da praça. O gol azul está onde deixamos. O cara do pó entra num Citroën C4, prata; canta o pneu quando sai.

O Cupim me deixa no ponto de ônibus. "Pega o frescão. Não esquece." A viagem de volta é um pouco mais rápida. Às sete o trânsito já está esvaziando. Um pouco antes da entrada da Avenida Brasil tem um engarrafamento. A polícia militar está fazendo uma blitz, parando carros e vans. Fico um pouco apreensivo.

Quando estamos mais próximos reconheço um Citroën prateado. O dono, paletó e gravata, já está sendo liberado por um policial satisfeito. O motorista de uma van; negro, desempregado, fazendo transporte irregular de passageiros, não tem a mesma sorte. Vai ter o veículo apreendido. O frescão passa sem problemas.

O prensado de Caxias foi o melhor que eu fumei até então.




Novembro 25, 2009

Optimistic

Não há nada mais aborrecedor do que lavar a louça. O problema é que quando você vai cozinhar está com fome; ou gula. Mas o importante é que há um ímpeto, uma força motivadora para picar cebola, cotar legumes, temperar, etc, etc. Ao final há um prêmio. Você vai comer algo bom.

Para lavar a louça não há ímpeto nem prêmio. Você vai enfiar sua mão na gordura, sujar a roupa e no final vai ter uma louça limpa? Me poupem.




Outubro 27, 2009

Isadora


Por mais confortável que um ônibus possa ser, sempre é cansativo viajar em um por mais de quarenta horas seguidas. Aquele ônibus não era dos mais confortáveis e a viagem levava quarenta e duas horas. Além de não poder ficar em pé sem ter que se esforçar para equilibrar-se nem poder deitar para dormir, ainda por cima não havia nada para fazer durante todo o trajeto, com exceção das paradas de tempo em tempo para comer ou esvaziar a bexiga, ou ambos, em postos de serviços ao longo da rodovia.

Quando a Isadora veio sentar ao seu lado, trocando de lugar com o Pierce, já passava da metade da viagem. Esses eram dois de seus cinco amigos que estavam indo passar as férias juntos.

Conhecera Isadora há pouco menos de dois anos quando ela entrou como caloura na mesma faculdade. Era uma menina linda. Aos dezenove anos tinha um rostinho de dezesseis, o corpo econômico nos volumes mas com curvas suficientes para deixar pensando até o mais correto dos homens.

O nariz afilado sobre a boquinha de anjo equilibrava os dois olhos de amêndoas, brilhantes e profundos. O queixo do tamanho de uma noz. Testa comprida. Tudo harmonizado pelos cabelos castanhos que desciam lisos até a altura das clavículas. A pinta na bochecha, do tamanho de um grão de arroz, dava o arremate final.

Quando lia sobre as ninfas gregas era o rosto de Isadora que imaginava. Não era uma beleza tradicional. Ao contrário era bastante exótica, do jeito que ele apreciava. E se não lhe faltava beleza, também vinha coberta por outras virtudes. Gentil e delicada mas com uma personalidade cativante. Se a voz tinha sempre um timbre adocicado, a cadência e o conteúdo eram de uma pura cosmopolita.

Haviam se tornado bons amigos. À princípio a aproximação se deu por que ele estava fascinado por Celebrine, de quem Isa era melhor amiga. Mas logo passaram a conversar animadamente nos intervalos das aulas, nas festas e, não demorou muito, nos bares que freqüentavam após as seções de cinema.

Ela gostava de andar de braços dados com o amigo, não se importando com quem pudesse ver. Ele se comprazia com aquela proximidade, sentindo o corpo quente da jovem ao lado do seu. Algumas vezes chegaram a ser confundidos com namorados por algum vendedor de rua. “Vai querer amendoim torrado? Pra namorada”. Vinham lhe vender rosas vermelhas na mesa do bar quando estavam juntos.

Só desprendia-se de seu braço quando encontravam com Pierce. Então ela ia para este e lhe dedicava toda a atenção. Àquela época Sérgio ainda não tinha certeza sobre o relacionamento entre os dois amigos.

Era noite e a maioria dos passageiros dormia quando Isadora sentou-se no seu colo e colocou sua mão sobre a dele. Apenas as pontas dos dedos se tocavam num contato tênue, quase místico, quase irreal.

Várias vezes havia dado carona à Isadora até sua casa. Várias vezes ela o convidara para ficar para o almoço. Só ele, a doméstica, que não deixava a cozinha e Isadora. Várias vezes ele aceitara.

Uma vez ela o convidou para subir e conhecer seu quarto. Bonito, arrumadinho mas sem frescuras. Isadora não era uma dessas meninas que enchem o quarto de posteres de galãs e bichinhos de pelúcia. Sentada na cama, pernas cruzadas. O shortinho curto expunha as duas coxas cor de creme. Conversaram bobagens, ela sorria, Depois desceram, almoçaram e ele foi embora.

O problemas era que o jeito de Isadora, seus gestos, suas palavras, sempre o deixavam em dúvida, Era apenas sua amiga ou havia algo a mais? Agia assim com todo mundo ou só com ele? Não conseguia encontrar as respostas à essas questões e sem as respostas não podia se decidir a dar o próximo passo.

No ônibus, luzes apagadas, o dorso da mão direita de Isadora roçava sua boca enquanto ele deslizava seus dedos sobre o antebraço esquerdo da menina, tocando apenas os finíssimos pêlos que o recobriam.

Não sabia quem havia fechado os olhos primeiro, se ele ou ela, mas quando no meio daquele êxtase estranho, de contatos mínimos, ele abriu os seus por alguns segundos, viu que os dela estavam fechados e os lábios, separados um do outro, deixavam escapar um suspiro mudo. Já vira expressões semelhantes nos rostos de outras mulheres mas não sem ter feito bastante esforço.

Braços se entrecruzavam enquanto seus dedos liam na pele um do outro um prazer sexual inexplicável. Uma sonata à quatro mãos. A ponta de seu dedo encostou na boca de Isadora, ficando entre os dois lábios perfeitos como se ela lhe pedisse silêncio com sua própria mão.

Mas o silêncio foi quebrado por duas meninas que viajavam nos assentos do ouro lado do corredor do ônibus. Haviam acordado em algum momento e agora os observavam. Uma deu um riso. Um risinho assim de nada, abafado, quase um sussurro.

Isadora abriu os olhos languidamente como que despertando de um sonho. Sorriu, sem mostrar marfim, apenas os cantos da boca se destendendo minimamente. Olhos brilhantes. O mais belo dos sorrisos. Deslizou para o seu próprio assento. Caiu no sono. Depois de algum tempo, quando cessaram os risinhos das duas meninas, ele também dormiu. Quando acordou era dia e a amiga não estava mais ao seu lado.

Nunca encontrou os lábios de Isadora.





Maio 27, 2008

A Bike


Quarenta e cinco minutos foi o tempo que levou até que o interfone tocasse. Correu para atendê-lo acossado pelas circunvoluções ruidosas de seu abdome. "Pois não?" O hálito amoniacal incomodava a si próprio. "É a pizza." Respondeu o aparelho eletrônico. "Já vai." Pegou o dinheiro separado há cerca de trinta minutos e foi até o portão, as chaves já no bolso da calça desde que o pedido fora feito.

O jardim estava frio, e teve vontade de voltar para vestir um agasalho. Mas que inferno! Agora que já estava no meio do caminho era melhor continuar. Se voltasse agora iria enregelar-se pelo dobro do tempo que já o havia feito até agora. Por outro lado, se fizesse todo o trajeto de ida até o portão sem o casaco, teria que fazer o de volta no frio também; e isso seria muito tempo de frio. Voltou.

Pegou uma blusa de lã e já ia vestindo quando pensou melhor. A blusa não era lá essas coisas em termos de proteção contra o clima. Digamos que diminuísse, talvez, a sensação térmica em trinta por cento. Ora, era um disparate ter percorrido metade do caminho até o portão e depois voltado, tudo isso exposto aos quatorze graus daquela noite, por apenas trinta por cento de redução na sensação térmica. Tirou a blusa e vestiu a jaqueta de couro. Agora sim, a proteção devia ser de uns quarenta e cinco por cento.

Estava na porta do quarto quando se deu conta de sua estupidez. Tinta mais quarenta e cinco são 75% a menos de frio! Voltou, tirou a jaqueta, colocou a blusa de lã, pôs a jaqueta por cima. Excelente, mas nada que não possa ser melhorado. Abriu a gaveta e pegou um cachecol. Caminhou faceiro através do jardim até o portão.

O entregador aguardava de pé. Casaco de moletom, capuz sobre a cabeça e pizza na mão. "Demorou hein." Comentou o freguês. "Pode crer, mano. Achei que tinha acontecido alguma coisa cum o sinhô." Com o dinheiro na mão, recontando o que já havia contado, o freguês demorou alguns segundos para entender. "Eu me referia à pizza!" O cachecol estava pinicando um pouco no pescoço. "Ah, é que eu vim de bike." Amarela, um tanto enferrujada, com o selim rasgado. "Pois devia ter vindo de moto." O entregador até se espantou. "Massácuméquié, ia piorar o aquecimento global." Então esse moleque estava tentando pegá-lo no seu próprio terreno!

Engenheiro florestal, trabalhava há sete anos na secretaria de Meio Ambiente do município. Não ia se deixar vencer por um qualquer assim tão facilmente. "Podia usar uma moto à álcool." Não era lá um argumento muito bom, mas não esperava que um entregador de pizzas pudesse refutá-lo. "E existe isso?" Sabe-se lá. Deve existir, por que não? "Claro que sim!" O entregador não estava muito convencido. "Nunca vi. Meismo assim, num se compara à uma bike.”

Não queria ficar ali discutindo com um garoto enquanto o cachecol espetava seu pescoço. Além do mais, estava começando a ficar com calor. Talvez tivesse exagerado nos agasalhos. "Ah meu filho, um frio desses e você vem com esse papo de aquecimento?" Melhor encerrar logo o assunto. "Olha, né por nada não dotô, mas ouvi dizer que isso aí tem nada a ver não.”

"E quem falou?”

"Então, foi a mina dum camarada meu que faz facul.”

Já era demais! Estava com fome, frio nos pés, suado no peito, pescoço coçando e ainda tinha que levar sermão de um entregador de pizza? "Vamos deixar de lenga-lenga, garoto. Quanto eu te devo?" Olhou pra cima, enrrugou a testa. O entregador puxava pela memória. "Vintium. Num te disseram pelo telefone?" Claro que tinham dito. Só perguntou por perguntar. "É, disseram, disseram. Toma aqui.”

O garoto estranhou as notas recebidas. "Tá trocado. Num tinha pedido troco pra trinta?" Mas qual a importância disso agora? "É, mas eu encontrei o um real que precisava." O entregador ergueu as sobrancelhas, contorceu a boca num bico para a esquerda e fez um muchocho. "Pô, demorei mó tempão prá conseguir teu troco lá.”

"Por isso que demorou tanto?”

"Então... Não. Foi por causa dessa ladeira que tem ali no fim da rua. Eu vim de bike né.”

O suor começava a escorrer debaixo do braço. Sentia o rosto quente e o cachecol empapado em volta do pescoço. "O sinhô tá meio suado. Tá passando mal?" Cacete, esse moleque não tem mais nada pra fazer não. "Não. É calor." O menino abriu um sorriso maroto.

"Então, tá vendo, é o aquecimento global. Essa mina do meu amigo disse que é assim meismo; em alguns lugares esquenta e nos outros esfria. Deve ser por isso que aqui na rua tá mó frio e aí dentro da tua casa tá quente.”

"Aquecimento global o caralho! Tô suado porque vim correndo te atender.”

O entregador fez que não acreditava. "Correndo? Num pareceu." Era só o que faltava o garoto agora vir chamá-lo de lerdo. "Olha, o papo tá bom mas é o seguinte; essa pizza tá fria." O garoto abriu as mãos como quem solta um pombo. "É que o sinhô demorou pra abrir o portão." Agora a culpa era sua! O que o menino queria, que ele saísse de casa sentindo frio? "Não, você que demorou pra subir a ladeira.”

O entregador concordou à contragosto, balançando a cabeça enquanto esfregava uma mão na outra tentando se esquentar. "Bom, esquenta aí no microondas então." E qual é a graça de comprar uma pizza feita em forno à lenha pra depois ter que requentar no microondas? "Aí vai gastar a minha energia elétrica. Sabia que tem gente construindo usina hidrelétrica na Amazônia só pra ter energia pras pessoas gastarem esquentando pizza que foi entregue fria?”

"Esquenta no forno então.”

"Aí emite CO2. Você não é todo preocupado com o meio ambiente?”

"E o quequiu sinhô quéquieu faça?”

Agora sim tinha virado o jogo. Esse entregador ficou sem argumentos. Completamente derrotado. Apesar da fome, decidiu desferir o golpe de misericórdia. "Volte lá e traga outra." A face descarnada do entregador estampava a dor da ferida causada pela estocada certeira do espadachim. “Voltar? De bike?" Ah, não havia no mundo pizza mais saborosa que o sabor da vitória! "Isso mesmo.”

O adversário vencido era inconsolável. Toda a sua linguagem corporal indicava a derrota. Uma mão apertava a outra, não mais por frio, mas em busca de um auxílio que não podia encontrar. A cabeça enterrada nos ombros se inclinava em direção ao chão. Olhava da pizza para a bicicleta, e então para a ladeira no fim da rua, voltando-se logo em seguida para o veículo. No entanto, repentinamente alguma coisa mudou naquele olhar. Aos poucos, segundo por segundo, não era mais a certeza da derrota que se refletia na íris do entregador. A testa desenrrugou-se e o rosto assumiu uma expressão de quem considera, analisa friamente uma hipótese, avalia os risco, arquiteta um plano. "Vai demorar. E se chegar fria de novo?" A sorte estava lançada. Cabia ao destino decidir-se pela cara ou pela coroa. A reação do freguês foi intempestiva. "Porra, não tem moto lá não?”

"Tem não sinhô. Aliás, ter tem; mas tamo sem grana aí pra gasolina. Tá muito cara né. Se o sinhô puder dar uma força.”

"Você tá me pedindo pra eu pagar a gasolina?”

"Se num for incomodar.”

"E o aquecimento global?”







Setembro 20, 2004

O Rato


Não tem nada que me dê mais nojo do que rato.

Caminhava sozinho no meio da noite, serelepe, fazendo seus ruídos característicos. Avistei o animal ainda à distância, já sabendo muito bem o que faria. As ruas estavam vazias e um vento frio soprava na noite sem lua, mas as lâmpadas dos postes eram suficientes para iluminar o espetáculo.

Desliguei os faróis e acelerei. Em poucos segundos fui da primeira à quarta marcha. TUM! A coisa se chocou contra o pára-brisa, rolou sobre o teto do carro e caíu alguns metros atrás de mim. Demorei para parar o carro, pois não queria cantar os pneus. Podia acordar a vizinhança. Olhando pelo retrovisor, vi que o bicho tentava se levantar. Ficou de bruços e apoiou o joelho direito no chão. Estava completamente desorientada a criatura, sem ter a menor idéia do que acontecia, mas fazia força para se erguer. Dei ré.

Ah, a ré! A traseira de um carro, ainda mais de un fiat, é completamente diferente da parte da frente. Quando você atropela um animal de frente, o capô funciona como uma rampa, que lança o corpo por sobre o carro. A ré não. É muito mais reta, quase como uma parede móvel, produz um impacto seco e o corpo entra pelo único lugar possível; por baixo do carro.

Como num passe de mágica: Oh! Abracadabra! E a coisa estava novamente à minha frente. Toda rasgada. Já era posível ver o sangue manchando o chão de terra batida. Fui em frente mais uma vez. Acho que estava pegando o gosto pela brincadeira. Engraçado. Fiquei horas, dias, imaginado como seria, planejando os detalhes. Mas eis que tudo era muito simples. Como são frágeis os seres vivos. O som era muito parecido com o de galhos secos quebrando-se quando você passa com o carro por cima deles.

A essa altura era possível que alguém tivesse ouvido os barulhos. Mas que iria fazer? Me repreenderia? Da forma como eu vejo, estava fazendo um serviço para a sociedade. Quem gosta de rato afinal? São sujos, nojentos, que só sabem emporcalhar e corromper tudo em que põem suas patinhas. Os vizinhos deviam me agradecer, isso sim! Ficariam livres daquela peste que perambulava impunemente pelo bairro. Ah, se o mundo fosse justo me declarariam herói nacional. O amigo do povo! Meu nome passaria à história, sucedido por algum epíteto grandioso: “O justo”; “O grande”! Mas como sabe-se a sociedade não costuma valorizar pessoas corretas, que fazem o bem. Quem vai se lembrar do poeta Gentileza daqui a duzentos anos? Quantos se lembram hoje? Mas Don Juan Tenório, Napoleão, Stálin, Sade, Hittler, Bush! Esses estariam para sempre na memória humana. Uma honraria eterna para os maiores sanguinários da história. Mas, felizmente, não para os ratos. Podiam não me condecorar pelo meu ato heróico, mas certamente não derramariam lágrimas por um rato.

Desliguei o motor e desci do carro. O verme caído no chão ainda estava consciente. O cotovelo dobrava para o lado oposto e o antebraço apontava grotescamente para trás. A pele, desacostumada com aquela posição, dobrava-se em alguns pontos e esgarçava-se em outros. O joelho direito, que antes tantara roubar-me a vitória, reduzira-se a fragmentos inconciliáveis de ossos, deixando a parte inferior da perna presa à coxa apenas pela pele. Alguns dentes espalhavam-se pelo chão, arrancados da mandíbula que agora estava livre dos ligamentos do lado direito do crânio e se pocisionava de forma bizarra à esquerda, babando uma mistura muito escura de saliva e sangue. Nojento. Como um rato.

O clima frio daquela semana tinha-me deixado um pouco resfriado. Sempre me acontecia isso quando a temperatura mudava bruscamente. Contraí os músculos da garganta, puxando o catarro verde e gelatinoso que cuspi no olho direito do animal. Me olhava aterrorizado. Não esperara por aquilo, mas percebia-se no rosto desfigurado que compreendia meus motivos. Talvez até me desse razão. O que teria feito ele no meu lugar, vendo a peste adentrando meu lar, comendo da minha comida e lambuzando-se no meu quarto? Não teria feito o mesmo? Não. Não é do feitio dos ratos. Talvez brigasse comigo, quisesse “lutar”, como um desses adolescentes que praticam judô. Eu certamente apanharia. Nunca fui bom de briga. Na verdade nunca quis ser. Não entendo esse negócio de “lutar”. Aprender golpes, praticar, me parece sem sentido. Ou você quer ferir a pessoa ou não quer. E se quiser, há meios muito mais eficientes e definitivos que com o punhos. Pode-se usar um revólver por exemplo. Ou um carro.

Tentou argumentar comigo, mas o acaso estava do meu lado. Da boca retorcida não saía som inteligível. Seus esforços faziam apenas borbulhar o sangue que dela escorria ininterruptamente. Comecei rir. Era engraçada a cena. O bicho estirado na rua tentando desesperadamente me convencer a ter piedade, mas sem conseguir articular palavra. Gargalhei. E com o riso que convulsionava meu corpo, não conseguia mais segurar a vontade de mijar que me assolava já há algum tempo, desde que comecei a seguir aquela coisa. Abri a braguilha, puxei o pau pra fora e comecei a urinar na cabeça do animal.

Cuspe e urina certamente deixariam pistas que as autoridades usariam para me identificar. Colocariam alguma luz especial sobre o meu carro para revelar machas invisíveis que esclareceriam tudo. O mundo hoje era dedicado a atrapalhar mesmo os pequenos prazeres das pessoas. Ainda assim, havia decidido há muito não me importar com essas coisas. Não se pode andar sempre na linha, se negar os prazeres para obedecer as regras da sociedade. Ele não se negou. Por eu deveria? Estou sendo “moderno”.

Fiquei olhando o rato babando e sangrando no chão de terra batida. Aos poucos foi se aquietando, perdendo a consciência. Demorou umas duas horas para parar de respirar. Ainda esperei alguns minutos para ter certeza de que não voltaria milagrosamente à vida. Depois entrei no carro e fui para casa. Sonhei com os anjos.







Setembro 20, 2009

Aulas de Piano


Quando papai adoeceu, sabíamos que dessa vez não havia esperança. Por dois anos achamos que ele estivesse curando, mas a volta do câncer acabou com nossa alegria. Mamãe sugeriu que ele se tratasse com outro médico, um cara novo, trinta e cinco anos, que ela dizia ser muito experiente pelo que leu sobre ele. Foi logo depois que ela voltou a tocar piano. O instrumento, então esquecido num canto sob a poeira dos anos, ganhou verniz novo, e foi posto em lugar de destaque no centro da sala. A princípio mamãe estava bem enferrujada, mas com as aulas que tinha, três vezes por semana, melhorou rápido. Não conseguia entender como mamãe podia se dedicar à música numa hora dessas, quando meu pai estava às portas da morte, mas papai a estimulava. "Não quero ninguém chorando o dia inteiro dentro de casa" dizia. "Prefiro que sua mãe tenha consolo no piano, que permanecerá aqui quando eu me for". Ele se conformara, apesar de todo o dinheiro gasto com o novo médico, que tentava os mais modernos tratamentos sem resultado.

Os parentes vinham visitá-lo todas as semanas. Não eram sempre os mesmos. Primeiro veio a tia Margô, com o marido e os filhos. Tio Jorge trouxe os cinco filhos, dois netos e uma garrafa de scotch para a última bebedeira com papai. Minha prima Elaine chegou falando sobre Buda e como a vida física era irrelevante. Ora vá à merda! E assim as visitas se sucediam, com um ramo da família de cada vez, num mórbido ritual de despedida.

Papai morreu pouco antes do Natal. No velório mamãe tocou ao órgão a música preferida dele: I Wish You Love, de Charles Trenet. Foi bonito. A essa altura ela já tocava melhor que muito artista por aí. Ele foi enterrado em um cemitério da cidade. Nada de gramados verdejantes estendendo-se até o horizonte, salpicado de árvores frondosas, com os parentes vestidos em negro e de óculos escuros. Não. Cada um veio de uma cor. Vovó Thelma veio de laranja, acho que só pra sacanear o genro morto. A Elaine acendeu incenso, mas foi impedida de discursar pelo tio Jorge, que, por sua vez, contou barbaridades sobre sua juventude com papai. Bêbado. O corpo foi colocado dentro de uma grande caixa de concreto, sobre o solo; e não abaixo dele.

Faz um ano que papai morreu. Hoje mamãe trouxe o médico de papai, o último, e o apresentou como seu novo namorado. Sete anos mais moço. Ela sentou ao piano e tocou I Wish You Love com perfeição. Ele, ao meu lado, comentou: "Linda não? Fui eu quem ensinei". Fui para o quarto. Naquela noite, os arpejos de mamãe me levaram à loucura.




Quarta-feira, Janeiro 14, 2008

A Questão Judaica


Qual a real história por traz da atual onda de violência e bárbarie que têm assolado o Oriente Médio, no qual Israel vem praticando um terrorismo de Estado que tem provocado a morte de milhares de palestinos na Faixa de Gaza, incluindo idosos e crianças?



A PALESTINA

Palestina é a denominação dada a um estreito situado no Oriente Médio, entre a costa oriental do Mediterrâneo e as margens do Rio Jordão, de favorável passagem entre a África e Ásia. Constituía-se num corredor natural para os antigos exércitos. Em meados do século XV a.C. a região é conquistada pelo faraó Tutmósis III, mas será perdida no final da XVIII dinastia, para ser novamente reconquistada por Seti I e por Ramsés II. Com o enfraquecimento do poder egípcio em finais do século XIII a.C., a região será invadida pelos Povos do Mar.

Um destes povos, os Filisteus, fixa-se junto à costa onde constroem um poderoso reino. Contemporânea a esta invasão é a chegada das tribos hebraicas, lideradas por Josué. A sua instalação no interior gerou guerras com os Filisteus, que se recusam a aceitar a religião hebraica. As tribos hebraicas decidem então unir-se para formar uma monarquia, cujo primeiro rei é Saul. O seu sucessor, David (início do I milénio a.C.) derrota finalmente os Filisteus e fixa a capital do reino em Jerusalém.

Durante o reinado do seu filho, Salomão, o reino vive um período de prosperidade, mas com a sua morte é dividido em duas partes: a norte, surgirá o reino de Israel (com capital na Samaria) e a sul, o reino de Judá (com capital em Jerusalém).

Ao longo dos séculos seguintes a região foi dominada por outras potências tais como a Assíria (722 a.C.), os babilônicos (séc. VII a.C.), os persas aquemênidas (539 a.C.), os greco-macedônios (331 a.C. a 142 a.C.) passando por uma retomada pelos locais Asmoneus que dominaram até o ano de 63 a.C. quando a região foi dominada pelo Império Romano.



IMPÉRIO ROMANO

No ano de 66 d.C. uma rebelião de judeus (os antigos hebreus) foi fortemente reprimida pelos romanos com a destruição do templo de Iavé no ano de 70, e novamente no ano de 131 a pax romana foi abalada por rebeliões ao fim das quais o imperador Adriano transformou Jerusalém na Colonia Aelia Capitolia. Após A divisão do Império Romano, a Palestina passou a ser parte do Império Romano do Oriente, ou Império Bizantino. Entre 324 d.C. e 638 d.C., a região experimentou extrema prosperidade e crescimendo demográfico, tendo a esta altura população de maioria cristã

No ano de 614 d.C. a região é dominada pelos persas Sassânidas que mantém seu jugo até o ano de 628 e no ano de 638 toda a região está sob o domínio árabe muçulmano.

Ao fim do longo domínio árabe de mais de quatro séculos, a religião islâmica acabou amplamente majoritária, seguindo-se de uma pequena minoria de cristãos e um menor número ainda de judaítas Samaritanos, até quando, no ano de 1072, sobreveio a conquista da região pelos turcos seldjúcidas que tinham capital em Bagdá.



AS CRUZADAS

No ano 1099 com a Primeira Cruzada europeus conquistaram Jerusalém e lá estabeleceram o seu domínio sob o nome de Reino Latino de Jerusalém cuja existência em meio à sociedade islâmica se demorou até o ano de 1187 quando a cidade foi reconquistada por Saladino.



IMPÉRIO OTOMANO

Após a expulsão dos Cruzados, a Palestina tornou-se parte do Sultanato mameluco do Egipto, integrada no distrito de Damasco. Sob a administração mameluca a região viveu cerca de 100 anos de prosperidade. Em 1516 as forças do Sultão Selim I derrotam os Mamelucos na batalha de Marj Dabiq, e ocupam a totalidade da Palestina, passando o controle ao Império Otomano. Os Otomanos, cuja religião oficial era a islãmica, mantiveram a posse da região até 1918, quando foram derrotados na Primeira Guerra Mundial. Em 1873 os primeiros emigrantes judeus europeus, sionistas, começam a chegar à Palestina. As terras exploradas por estes colonos eram arrendadas diretamente à administração Turca.

Durante os domínios assírio, babilônico, persa, grego, romano, bizantino e sassânido, a presença judaica na região diminuiu por causa de expulsões em massa, sendo muito pequeno o número dos que retornaram à região depois disso. A maioria dos judeus se espalhou pelo mundo, principalmente na Europa, Rússia e partes da África.

Por toda a Idade Média, os judeus foram brutalmente perseguidos na Europa e Rússia, especialmente após o estabelecimento do Santo Ofício da Igreja Católica Romana, que elaborou um bem-sucedido esquema de extermínio de judeus, responsabilizando-os pela morte de Jesus Cristo, o principal messias da religião de Roma.

Embora algumas famílias judias tenham sido extremamente bem-sucedidas econômicamente e acumulado uma extensa fortuna, incluindo os Rothschilds, os Benettons e os Rockefellers; a maioria contiunou alijada da vida social e econômica, vivendo em extrema pobreza.

Com o advendo do Iluminsmo e o fim da Inquisição, a perseguição aos judeus arrefeceu e estes começaram a desenvolver um reformado e profundo senso de unidade étnica. A reação da Rússia e da Europa Oriental à essa nova postura isolacionista foi a realização durante o séc. XIX dos pogroms, chacinas generalizadas de judeus seguida da destruição de seus lares, centros religiosos e comerciais.



A QUESTÃO JUDAICA

Entre 1881 e 1884 uma onda maciça de pogroms varreu o sul do Império Russo, levando à emigração maciça dos judeus. Foi criado o movimento sionista, que defendia que o único meio de encerrar a peseguição aos judeus era o estabelecimento de um "Estado Judaico". Vários lugares foram sugeridos para o estabelecimento desse novo Estado, incluindo-se o Quênia e a Argentina entre outros. Foi só em 1897 que o movimento sionista decidiu-se por criar um estado judeu na região da Palestina. A população era em sua maioria esmagadora árabe e mulçumana (desde o ano 614 d.C.), com apenas alguns assentamentos judeus (cerca de 50.000 judeus) remanescentes que viviam como cidadões do Império Otomano.

Durante a Revolução Russa de 1917 e a conseqüente Guerra Civil Russa, o Exército Branco, defensor da monarquia, identificou os judeus como atores principais do "complô judaico-bolchevique", realizando vários pogroms e provocando a emigração em massa de judeus para a Europa. Os europeus responderam com o endurecimento do racismo e perseguições contra judeus.

Após a decisão unilateral do movimento sionista (considerado um movimento racista pela ONU até 1991) de fundar o "Estado Judaico" na Palestina, ocorreu um aumento da imigração de judeus que fugiam dos pogroms da Europa oriental. Essa imigração aumentou o número de judeus para 100.000 em 1925, apesar do Império Britânico ter tantado impedir o fluxo migratório. Foi então que se iniciaram os conflitos étnicos na região, pois os imigrantes judeus se consideravam donos legítimos do território (dado a eles por Deus), vendo os árabes como usurpadores (apesar da colonização árabe ter ocorrido ha mais de 1300 anos).

Foi após a ordem de imigração do movimento sionista que foram criados os primeiros grupos terroristas fundamentalistas na palestina: O Bar-Giora (1907, depois Hashomer - 1909 e finalmente Haganah - 1920) e o Irgun ( ou Etzel - 1931); ambos constituídos por terrorista JUDEUS recém-imigrados. Importante lembrar que um dos líderes do Haganah foi David Ben-Gurion. Após a "independência" de Israel o Irgun se transformaria no Herut; partido de direita que mais tarde se transformaria no Likud e no Kadima, enquanto o Haganah daria origem à Forças de Defesa de Israel e ao Partido Trabalhista (de esquerda). Além de Ben-Gurion, também foram "militantes" do Irgun proeminentes nomes da política israelense, como Yitzhak Rabin, Ariel Sharon, Rehavam Zeevi, Dov Hoz, Moshe Dayan, Yigal Allon e Ruth Westheimer.

Mas vamos retomar a ordem cronológica. Em 1917 durante a Primeira Guerra Mundial, o ministro Britânico de Relações Exteriores, Arthur Balfour a "Declaração de Balfour", que diz que "O governo de Sua Majestade encara favoravelmente o estabelecimento, na Palestina, de um Lar Nacional para o Povo Judeu..." e que "seja claramente entendido que nada será feito que possa prejudicar os direitos civis e religiosos das comunidades não-judaicas na Palestina, ou os direitos e estatuto político usufruídos pelos judeus em qualquer outro país." A Legião Judaica, um grupo composto principalmente por batalhões de voluntários sionistas, auxiliou o exército britânico na conquista da Palestina, até então posse Otomana. Grupos árabes de oposição estimularam motins na Palestina como resposta à formação do Haganah.

Os objetivos principais do Bar-Giora e do Irgun era estabeler o Estado judaico na Palestina. Por "Estado judaico" entanda-se uma nação de maioria judaica regida por leis fortemente baseadas na religião judaica, às quais todos os cidadões deveriam se submeter independentemente de seu credo ou etnia. No caso do Irgun os objetivos eram bem específicos: "expulsar os Britânicos da Palestina, derrotar politicamente os Árabes, trazer um milhão de colonos Judeus por ano e colonizar ambas as margens do rio Jordão". Para atingir esses objetivos numa região amplamente povoada por mulçumanos há muitos séculos, os dois grupos optaram pela violência. Ambos falicilitavam a entrada ilegal de imigrandes judeus na Palestina e utilizavam táticas terroristas para amedrontar e expulsar um grande número de famílias árabes da suas terras. Essas propriedades eram prontamente colonizadas por imigrantes judeus. O terrorismo judaico e a expulsão das famílias palestinas de suas terras causou o acirramento dos conflitos, com atos de violência de ambas as partes.



ASCENSÃO DE HITLER

A imigração judaica aumentou em 1933, em resultado da ascensão ao poder de Hitler. Entre 1933-36 a população judaica na Palestina aumentou de 230.000 para 400.000. Em 15 de Abril de 1936 os Árabes declararam uma greve geral contra a ocupação de seu território e o esmagamento demográfico sofrido pelos árabes por estrangeiros que se auto-proclamavam "o povo escolhido" e os donos legítimos do território. A greve rapidamente se tornou numa rebelião aberta.

Somente em outubro o Império Britânico só conseguiu restaurar a ordem. Haviam morrido 138 Árabes, 80 Judeus e 33 soldados Britânicos. O governo Inglês começou a se dar conta da amplitude do problema e a adotar medidas desesperadas. Em 1937 uma Comissão Real[5] anunciou um plano para dividir o protectorado em dois Estados: a Galileia e a planície junto à costa pertenceriam aos Judeus. Gaza, Sameria, a Judéia do Sul e o deserto de Negev seriam governadas pelos Árabes. Os Britânicos manteriam o controlo de Jerusalém, Belém, Jaffa e Lod. Os judeus prontamente concordaram com o plano, mas os Árabes não. Eles compreendiam que qualquer concessão aos sionistas seria rapidamente seguida por mais exigências e intimidação. O plano nunca foi implementado.

Em 1940 foi fundado o Gang Stern, grupo para-militar judeu de extrema-direita. O Gang Stern não tolerava qualquer limitação à expansão sionista e tentou, imediatamente, forçar uma mudança de política assassinando oficiais Britânicos. O ódio pelos Britânicos era tanto que os considerava um inimigo maior do que Hitler, e opunha-se a que judeus se alistassem para a guerra contra a Alemanha. Em Setembro de 1940, o Gang Stern entrou em negociações com Mussolini, através de um emissário, e em Janeiro de 1941 Stern enviou, pessoalmente, um agente a Beirute para entregar uma carta aos representantes do Reich, solicitando apoio à causa sionista. Talvez os líderes do grupo estivessem muito concentrados nas atividades na Palestina e não conhecessem a realidade da "questão judaica" na Alemanha nazista. Foi também no Gang Stern que o futuro Primeiro Ministro de Israel, Yitzhak Shamir, adquiriu notoriedade, assumindo a liderança do grupo terrorista após a morte de seu fundador. O extremismo político de Stern, as tentativas de ligação com os Nazistas e os assaltos à mão-armada valeram-lhe o desprezo da maioria dos Judeus.

Também em 1940 o Haganah iniciou uma série de atentadoa à bombas contra navios britânicos, afundando o SS Patria no porto de Haifa (1940) e o SS Struma no mar Negro (1942), matando 1039 homens, mulheres e crianças. Em 1942 o Gang Stern assassinou Lorde Moyne, Secretário de Estado Colonial Britânico para a Palestina, durande sua estada no Cairo, capital do Egito. Os dois membros do Gang Stern responsáveis pelo assassinato foram presos e executados pelo exército britânico. Yitzhak Shamir, futuro primeiro-ministro de Israel, trouxe seus restos mortais para Israel, onde ambos foram sepultamos com honras pela comunidade judaica. Até hoje ambos são considerados "heróis da independência" em Israel, tendo nomes de ruas e monumentos dedicados a eles.



INVENÇÃO DO ESTADO DE ISRAEL

O Nacionalismo Sionista havia afundado em caos o território da Palestina, desmoralizado o governo britânico e assumido a poder de fato sobre a região. Em julho 1946, a Agência Judaica, de David Bem-Gurion, realizou um atentado à bomba contra o hotel King David, que servia de escritórios do Secretariado do governo Palestiniano e de Quartel General do exército Britânico, deixando 91 mortos. Os atos de barbárie se sucederam, tornando impossível a vida social na região e aterrorizando os funcionário britânicos.

Em 1947, o governo britânico acabou declarou que era incapaz de chegar a uma solução aceitável para ambos os lados e decidiu encerrar o mandato britânico sobre a Palestina, entregando a Administração à recém-criada Organização das Nações Unidas (ONU), que aprovou o Plano de partição da Palestina (Assembléia Geral das Nações Unidas através da Resolução 181) em 29 de novembro de 1947, dividindo o país em dois Estados, um árabe e um judeu. Jerusalém foi designada para ser uma cidade internacional administrada pela ONU para evitar um possível conflito sobre o seu estatuto. A comunidade judaica aceitou o plano, mas a Liga Árabe e a Comissão Superior Árabe o rejeitaram. Em 1º de dezembro de 1947 o Comissão Superior Árabe proclamou uma greve de 3 dias e os grupos árabes começaram a atacar alvos judeus. Uma guerra civil começou com os judeus inicialmente na defensiva, mas gradualmente partindo para o ataque.

Em 10 de abril de 1948 a população árabe de Nasr el Din foi massacrada. Em 5 de maio de 1948 foram mortos homens, mulheres e crianças da aldeia de Khoury. No dia em que o mandato Britânico acabou, em 14 de Maio de 1948, o Estado de Israel declarou independência, escolhendo Ben-Gurion como Primeiro-Ministro. Nete mesmo dia os aldeões de Beit Drass foram chacinados. Na aldeia de Deir Yassin, a Irgun matou 250 Árabes, numa orgia de violência sem precedentes. O Secretário de Estado Britânico para as Colônias disse: "Esta bárbara agressão é uma prova de selvageria. É um crime a acrescentar à longa lista de atrocidades cometidas pelos sionistas até este dia, e para o qual não conseguimos encontrar palavras de repulsa." Perto do final de 1948, o Gang Stern assassinou o mediador das Nações Unidas para a Palestina, o Conde Folke Bernadette. A economia árabe-palestina desmoronou e 250.000 árabes-palestinos fugiram ou foram expulsos. A Síria, Líbano, Iraque, Arábia Saudita, Egito e Jordânia não reconheceram a independência de Israel e decidiram apoiar a população árabe palestina, iniciando movimentos de exércitos regulares para ingressar na região. Estava deflagrada a Primeira Guerra árabe-israelense.

Seguiu-se a esta a Guerra de Suez (1956). Em 1964 Yasser Arafat e Khalil al-Wazir fundaram o Fatah, grupo para-militar que reivindica a criação de um Estado palestino. Mais tarde o Fatah renunciou a luta armada e se tornou um partido político palestino, ocupando a presidência da OLP (Organização para a Libertação da Palestina). Em 1967 iniciou-se a Guerra dos Seis Dias, seguida pela Guerra do Yom Kippur (1973). Em 1987 foi criado o Hamas, grupo para-militar que usa táticas terroristas contra o Estado de Israel, e também atua como partido político. Atualmente, Egito, Jordânia e a OLP reconheceram o direito de Israel à sua existência, embora discordem sobre os limites de seu território e reinvidiquem a criação de um Estado palestino. Líbano, Síria, Iraque e Arábia Saudita, continuam não reconhecendo o direito do Estado de Israel à existência. Em 2005 o Hamas assumiu o governo da Autoridade Nacional Palestina e atualmente controla a Faixa de Gaza.


Postado por Kaiser às 16:00


O autor

Kaiser D Schwarcz Kaiser Dias Schwarcz nasceu no Rio de janeiro onde se graduou em biologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em 2005 se mudou para o estado de São Paulo, concluindo o mestrado em genética no final de 2008 pela Universidade Estadual de Campinas.


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